A Verdade Além dos Conceitos – (2) - Ramsh Balsekar


Qualquer ação que aconteça, podemos sempre buscar o motivo na programação

WIE: É claro que você acredita que tudo que nós fazemos é porque é a vontade de Deus que nós o façamos. Mas me parece que isso só faria realmente sentido no caso de um indivíduo que chegou ao fim do caminho espiritual - que tenha acabado com o ego - porque as ações dessa pessoa não estão a serviço de si mesma e, portanto, não surgiria nenhuma deformação com a vontade de Deus. Mas até esse ponto, se um indivíduo age incorretamente em relação a outro, bem poderia ser somente uma reação compulsiva porque a pessoa sente-se egoísta. Se este é o caso, então o que você diz poderia realmente ser usado como uma justificativa para um comportamento desagradável ou agressivo. Você acaba de dizer, "é tudo a vontade de Deus. Não tem importância!"

Ramsh Balsekar: Sei, mas isso é a verdade. Sua pergunta real é, "por que Deus criou o mundo como é?" Mas veja, um ser humano é somente um objeto criado que é parte da totalidade da manifestação que veio da Fonte. Portanto minha resposta é: "um objeto criado jamais poderia conhecer seu criador!" Deixe-me trazer uma metáfora. Vamos imaginar que você pinte um quadro, e nesse quadro você pinta uma figura. Então aquela figura quer saber primeiro, por que você, como um pintor pintou esse quadro particular, e segundo, por que você pintou aquela figura de modo tão feio! Veja, como pode um objeto criado jamais conhecer a vontade do próprio criador? Meu ponto de vista é que, embora seja assim, isso não o impede de fazer o que você pensa que você deva fazer! Aceitar que nada acontece a menos que seja a vontade de Deus, isso não impede a qualquer pessoa de fazer o que ela pensa que deva fazer. Poderia ser de outra forma?

WIE: Mas baseado nesta linha de raciocínio, como disse antes, seria bastante fácil concluir que, "Ok, tudo é a vontade de Deus, não importa o que acontece!"

RB: Quer dizer, "Então por que deveria fazer qualquer coisa em vez de ficar na cama o dia inteiro?"

WIE: Sim, por que continuar a fazer qualquer esforço?

RB: A resposta é que a energia dentro deste organismo corpo/mente não permitirá a este organismo corpo/mente permanecer inativo nem mesmo por um momento. A energia continuará a produzir alguma ação, física ou mental, a cada instante, de acordo com a programação do organismo corpo/mente e o destino do organismo corpo/mente, que é a vontade de Deus. Mas isso não impede a você, que ainda pensa que é um indivíduo, de fazer o que você pensa que você deve fazer. Portanto, o que de fato eu digo é, "Aquilo que você pensa que você deve fazer em qualquer situação, em qualquer momento particular, é precisamente aquilo que Deus quer que você pense que você deve fazer!" Definitivamente, aceitar a vontade de Deus não vai impedi-lo de fazer o que você pensa que você deve fazer. Vê? Aliás, você não pode fazer nada mais que fazê-lo!

WIE: De acordo com sua maneira de ver o mundo, isso soa como se, tudo que quer que nós consideremos como sendo nossa escolha, nossa própria vontade e responsabilidade, foi transferida do indivíduo para Deus ou a Consciência. É isso o que você diz?

RB: Quando você pensa que é você quem faz, o que acontece? Há culpa, orgulho, ódio e inveja. Mas isso ainda não impede ao que acontece de continuar a acontecer. Mas quando você pensa que você não faz, então não há nenhuma culpa, nenhum orgulho, nenhum ódio, nenhuma inveja! A vida torna-se mais pacífica.

WIE: Leio algo num folheto escrito por vários de seus estudantes que parece relevante a esse propósito. Diz: "Aquilo que você gosta só pode ser porque é a vontade de Deus que você goste. Nada pode acontecer a menos que seja Sua vontade".

RB: Sim, é isso.

WIE: O folheto também diz: "Não se sinta culpado mesmo que um adultério aconteça. Você, a Fonte, é sempre pura".

RB: Isso é Ramana Maharshi quem disse.

WIE: Meu ponto é que a Fonte pode ser sempre pura, mas novamente, parece-me que isso poderia facilmente ser tomado como uma desculpa para agir sem consciência. Você poderia dizer, "não importa se cometo adultério, não importa se machuco meus amigos porque é simplesmente uma ação que acontece". Poderia facilmente ser tomada como uma permissão para agir segundo meu desejo, só porque me aconteceu de ter aquele desejo.

RB: Mas não é isso que acontece?

WIE: Acontece, certamente, mas...

RB: Quer dizer que aconteceria mais frequentemente?

WIE: Com facilidade, poderia acontecer mais. Eu poderia dizer, "Hei, não importa o que eu faça agora. Eu não devo conter-me se sinto um desejo". É claro o que eu quero dizer?

RB: A pergunta, normalmente formulada seria essa: "Se eu realmente não faço nada, o que me impede de pegar uma metralhadora e sair por aí e matar vinte pessoas?" É isto que você pergunta, não?

WIE: Bem, isso é um exemplo extremo.

RB: Sim, vamos pegar um exemplo extremo!

WIE: Mas eu acho que seria mais interessante considerar o exemplo do adultério, porque muita gente realmente não faria algo tão extremo como sair por aí de metralhadora para derrubar outras pessoas.

RB: Bem. É a mesma coisa quando conversamos sobre cometer adultério.
Leio que os psicólogos e biólogos, baseados em suas pesquisas, chegaram à conclusão que se você trair sua esposa, você não deve se culpar.

WIE: Bem, eu não creio que essa seja a opinião de toda a comunidade científica.

RB: O que eu digo é isso, cada vez mais os cientistas estão chegando à conclusão que os místicos sempre sustentaram - de que qualquer ação que aconteça, podemos sempre buscar o motivo na programação.

WIE: Dou-me conta de que, em alguns casos, isto pode ser verdade, mas deixe-me dizer, por exemplo, que eu tenha o desejo de cometer adultério. Posso dizer, "deve ser a vontade de Deus que eu faça isto e então seguirei adiante" ou, posso conter-me e não causar tanto sofrimento para meus amigos. Não seria melhor se eu me contivesse?

RB: Então o que é que o impede de se conter? Faça como quiser! O que o impede de conter-se? Contenha-se!

WIE: Meu ponto de vista é que é melhor fazer assim!

RB: Também é o meu.

WIE: Mas de acordo com sua visão, assim eu poderia facilmente dizer, "se eu sinto esse desejo, deve ser porque é a vontade de Deus", e então não me contenho.

RB: Você afirma que você sabe que deveria se conter, então por que você não se contém? Se um organismo corpo/mente não é programado para trair sua esposa, então qualquer coisa que digam os outros, ele não o fará. Se você for programado de maneira que você não levantará sua mão contra ninguém, você começará a matar as pessoas? Agora, se existisse uma lei permitindo que você bata em sua esposa sem que você corra nenhum risco, você começaria a surrar sua esposa? Não, a menos que o organismo corpo/mente seja programado para fazer isso, e se é programado para fazer isso, o fará de qualquer jeito. Então como disse, aceitar a vontade de Deus não vai impedi-lo de fazer qualquer coisa que você pense que você deva fazer. Faça-a! Faça exatamente aquilo que você acha que deva ser feito!

WIE: Todavia, no final, como podemos dizer que sabemos que é destino ou a vontade de Deus? Tudo que nós sabemos é que certos eventos se manifestam. Em seguida, podemos rever algo que fizemos e admitir, "Aconteceu, simplesmente" e se gostamos, podemos chamá-lo de destino. Mas não é mais exato dizer que nós realmente não sabemos se é destino ou não?

RB: Esse é o ponto. Nós não sabemos.

WIE: Mas dizer que não sabemos é diferente de dizer "sabemos que é a vontade de Deus". É diferente de dizer "sabemos que tudo é predestinado". Veja, me parece que você quer afirmar que você sabe que tudo é a vontade de Deus.

RB: Nós não sabemos, e isto é um fato; então se você quiser você pode jogar fora o conceito de destino e dizer que ninguém realmente pode saber alguma coisa sobre nada. Ótimo! Não há nenhuma necessidade de manter o conceito de destino. Afinal de contas, se aceita que o que acontece não está em seu controle, então quem estaria preocupado com o destino?

WIE: Já que muitos buscadores espirituais vêm a você para receber algum conselho sobre o caminho espiritual, eu gostaria de saber que valor, se é que tem algum valor, você dá ao caminho espiritual como instrumento em direção à Iluminação.

RB: Se a sadhana [a prática espiritual] é necessária, um organismo corpo/mente é programado para seguir uma sadhana.

WIE: Em outras palavras, se tem que acontecer, acontece?

RB: Isso mesmo. As pessoas às vezes me perguntam, "Se nada está em nossas mãos, deveríamos meditar ou não?" Minha resposta é muito simples. Se vocês gostam de meditar, meditem; se vocês não gostam de meditar, não se forcem a meditar.

WIE: A busca espiritual então é um obstáculo para Iluminação?

RB: Sim, buscar é o maior obstáculo por causa da presença do buscador. O buscador é o obstáculo - não a busca; a busca acontece por si mesma. A busca acontece porque o organismo corpo/mente é programado para buscar. Se a busca da iluminação acontece, então o organismo corpo/mente foi programado para buscar. O obstáculo é o buscador que diz, "quero a Iluminação".

WIE: Então porque tantos sábios falaram sobre a importância da busca? Ramana Maharshi disse que o buscador tem que querer a Iluminação com a mesma intensidade que um homem que esteja afogando-se quer o ar, com o mesmo grau de concentração e sinceridade.

RB: Certamente. Portanto isso quer dizer que tem que ter esse tipo de intensidade na busca. Mas ele também disse, "Se você quer fazer um esforço, você deve fazer um esforço; mas se o esforço não é destinado a acontecer, o esforço não será feito". É isso que Ramana Maharshi disse. Então veja, se alguém busca ou não busca não está em seu controle. Se a busca por Deus ou a busca pelo dinheiro acontece, não é nem seu mérito nem sua culpa.

WIE: Num de seus livros você afirmou que alguém realmente alcançou certa profundidade de entendimento quando pode dizer, "eu não estou nem aí se a Iluminação acontece ou não neste organismo corpo/mente".

RB: É verdade. Quando alcança esse estágio, então significa que o buscador não está mais aí. Está extremamente perto da Iluminação porque se não há ninguém que se interesse, então não há mais nenhum buscador.

WIE: Mas o resultado não pode ser uma indiferença extraordinariamente profunda que não é Iluminação?

RB: Isso poderia levar a Iluminação!

WIE: Tenho mais uma pergunta. Você frequentemente diz que nós deveríamos "somente aceitar o que é".

RB: Sim, se é possível para você fazer isto - e isto não está em seu controle!

Ramsh Balsekar

EPÍLOGO

Enquanto passei meio zonzo pelo porteiro e saia nas ruas tumultuadas de Bombaim, minha mente vacilava. Como poderia ser, perguntei-me enquanto abria caminho no meio da multidão, que um homem educado e inteligente como Ramesh Balsekar pudesse realmente acreditar que tudo seja predestinado, que antes de ter nascido, nosso destino já estava gravado numa espécie de granito etéreo? Poderia ele ser realmente sério em sua insistência de que nossa vida inteira, com seu fluxo aparentemente interminável de escolhas e decisões e oportunidades para sistematizar o próprio curso para melhor ou para pior, seja realmente, desde o primeiro respiro, um destino?

Enquanto atravessava a calçada em busca de um café, onde encontrar um refúgio do caos, os pontos difíceis de nosso breve diálogo iam passando em minha cabeça. Sim, "Assim seja" é a essência da maioria das religiões, pensei comigo, mas para os grandes místicos e sábios que fizeram tais declarações por toda a história, a rendição à vontade de Deus tem um significado muito maior do que simplesmente aceitar que não há nada que ninguém possa fazer para influenciar as circunstâncias da vida. Certamente aquilo que tradicionalmente se referia "a vontade Deus" é algo que alguém descobre quando o ego foi absolutamente abandonado, quando todas as motivações egoísticas foram todas queimadas, deixando-o completamente rendido para cumprir a vontade de Deus, qualquer que ela seja! Para um Jesus ou um Ramakrishna ou um Ramana Maharshi dizer que se rendeu à vontade de Deus é um fato. Mas dizer que isto é verdade para todo o mundo, naquele momento, pareceu-me refletir uma forma perigosa e particular de loucura que poderia ser usada para justificar as mais extremas formas de comportamento.

A declaração de Balsekar, "O que você acha que você deve fazer em qualquer situação... é precisamente aquilo que Deus quer que você ache que deva fazer", significa que para ele o Buda Iluminado não está fazendo em medida maior a vontade de Deus que o assassino em série que ataca sua próxima vítima. Tinha vindo à entrevista esperando que houvesse algum desacordo, mas de qualquer forma até os livros de Balsekar, nos quais todas essas ideias são claramente e repetidamente expressadas, não me tinham preparado para meu encontro com o homem. Como tinham lhe surgido essas ideias? Perguntei-me. E por quê? Meus pensamentos rodavam e rodavam, lembrando-me de sua arrepiante afirmação de que, mesmo quando machucamos alguém, não precisamos sentirmo-nos culpados, pois nós não somos responsáveis por nossas ações - que mesmo "Hitler foi meramente um instrumento através do qual os acontecimentos horríveis que tinham que acontecer aconteceram". Sua afirmação, desafiando todo bom senso, que nós não temos nenhum poder de controlar nosso comportamento ou até de influenciar o dos outros. E tudo isto no contexto de sua descrição fantástica de todos nós como "organismos corpo/mente, exercitando nossa 'programação'".

De repente, a visão bem-vinda de uma loja de chá apareceu através da névoa e enquanto conseguia um espaço para entrar, senti alívio ao achar aquele tipo de oásis tranquilo que tinha esperado encontrar. Foi aí, numa das muitas mesas vazias, enquanto o primeiro gole de chá ao leite de sabor adocicado passava pelos meus lábios, que num flash, minha ficha caiu. Eu não estava bebendo aquele chá! Eu não estava sentado naquela mesa! De fato, eu não era aquele que tinha entrado na loja de chá. E eu não era aquele que acabava de se atormentar durante uma hora numa conversa com um homem que naquele momento começava a parecer como um indivíduo são. Aliás, eu nunca tinha feito alguma coisa. Era como se um peso que eu tinha carregado durante minha vida inteira de repente fosse levantado no céu graças a um balão de ar quente, e levado para longe, para nunca mais voltar novamente. Todos aqueles anos eu tinha lutado para virar um ser humano melhor, mais generoso mais honesto - todo aquele esforço que eu tinha feito para renunciar a minhas inclinações de superioridade, egoísmo e agressividade - foram todos uma louca empreitada, todos estupidamente e sem necessidade, baseados na ideia importante de que eu tinha algum controle sobre meu destino e a mesquinha presunção de que aquilo que eu fazia pudesse importar aos "outros". Como podia ter me desviado tanto? Mas espera , não era sequer eu quem se tinha desviado! Como se as nuvens se abrissem, de relance agora eu vejo claramente que aquilo que eu tinha pensado como "a minha vida" tinha sido na verdade somente um processo mecânico. A pessoa que eu pensava ser, sempre tinha sido somente uma máquina. E o mundo em que eu pensei que eu tinha vivido não era, como tinha suposto, um mundo de complexidade humana, mas um mundo de simplicidade mecanicista, de ordem perfeita, um matemático desenrolar de programas em movimento, desde o começo do tempo. Como a perfeição clínica do plano científico de Deus começou a abrir-se perante mim, a emoção extática da liberdade absoluta - da preocupação, do cuidado, da obrigação, da culpa - começou a fluir pelas minhas veias como uma torrente sem margens. E com isso veio uma paz envolvente e retumbante, uma cessação absoluta de tensão, no reconhecimento de que nenhuma ambiguidade aparente ou incerteza eu poderia encontrar daí pra frente, não importa quais decisões aparentemente difíceis poderia encontrar, eu poderia sempre descansar na certeza de que qualquer escolha que eu fizer era exatamente a escolha que Deus queria que eu fizesse. A sensação misteriosa de um desconhecido que tinha me arrastado por tanto tempo tinha evaporado. Os outros no café viraram suas cabeças enquanto eu ria alto, uma risada longa, de barriga, e fiquei pensando comigo mesmo que jogo fantástico seria a vida se todo o mundo entendesse como ela realmente funciona, se todo o mundo pudesse pelo menos ter um vislumbre de como poderíamos ser livres se todos vivêssemos no Planeta Advaita."

Fonte: http://editoraadvaita.blogspot.com/2009/10/planeta-advaita.html








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